domingo, 17 de junho de 2007

Orações

“as cinco cores cegam a visão do homem

os cinco tons ensurdecem a audição do homem

os cinco sabores embotam o paladar do homem

galopes e calçadas frenesiam o coração do homem

bens custosos obstam as ações do homem

por isso o homem santo

sendo entranhas não olhos

afasta o ali agarra o aqui”

“quem conhece o outro é sábio

quem conhece a si mesmo é iluminado

quem vence o outro tem força

quem vence a si é forte

quem se contenta é rico

quem se força a andar tem querer

quem não perde seu lugar perdura

quem morre sem se anular tem a vida”

I must not fear.

Fear is the mind-killer.

Fear is the little-death that brings total obliteration.

I will face my fear.

I will permit it to pass over me and through me.

And when it has gone past,

I will turn the inner eye to see its path.

Where the fear has gone there will be nothing.

Only I will remain”.


Primeiros dois textos: Cantos XII e XXXIII do “Dao de Jing”, de Laozi (604 a. C. - ?).

Terceiro texto: Bene Gesserit Litany Against Fear, from “Dune”, by Frank Herbert.

Teatro

Fui ao teatro. Depois de muito tempo. Musical. Quem me conhece sabe que lido com os musicais de uma maneira, no mínimo, curiosa. Tive ontem uma espécie de nostalgia de palco. E não era uma nostalgia do espetáculo, mas uma nostalgia dos ensaios. Me explico: teatro pequeno, com recursos técnicos de pequena escala, mas bem aplicados. E aquele sabor de “queremos mostrar pra vocês o que andamos preparando”. Há muito eu não sentia essa mesma energia...


Me fez lembrar da época dos ensaios do grupo de teatro no Colégio Técnico de Jundiaí. Éramos um bando de estudantes do Ensino Médio aprendendo o que era o Teatro. Não estávamos ali por amor à arte, pois não tínhamos repertório, à época, para tal envolvimento. Estávamos lá, se pudermos agrupar as múltiplas razões em dois grupos, por pura diversão e pela possibilidade de libertação relacionada à arte de representar.


A “diversão” era a parte mais simples, mais “pública”: no sentido mais alegre e vívido do termo, um monte de amigos e colegas se reunia nas tardes de sexta-feira para rir, pensar, sentir e brincar juntos. Era gostoso ter companheiros; na época, muitos de nós descobrimos no teatro o que era trabalho em equipe, o que significava se preocupar com o outro pela importância que ele tem para o conjunto. E isso era também divertido: a gente dava muita risada, a gente saía de lá – por vezes – de alma lavada, de coração quente e alegre, recarregado por uma energia luminosa e bonita. Compartilhada generosamente por todos.


“Libertação” foi só um nome que dei para o que, no fundo, continua a ser “diversão”, mas no sentido original do divertire latino, do “desviar-se” (já mencionado em um texto anterior); um desviar-se de si, para um reencontro mais adiante. Para nós todos naquele momento – cada um a sua maneira, claro – o teatro era a porta de entrada para nós mesmos, era o lugar onde descobríamos silenciosamente que possuíamos mais recursos do que acreditávamos possuir, que éramos mais complexos do que podíamos ver, que éramos maiores quando nos descobríamos como seres humanos. A partir daí, havia três caminhos a seguir: 1. o sujeito, com medo de si mesmo, sai do grupo, pois não consegue se encarar ainda; pode ser que o faça depois (tornando-se, inclusive, muito bom nisso), pode ser que não o faça nunca, mas o teatro o tortura, pois o força a se olhar no espelho, e ele simplesmente não consegue agüentar o que vê, não consegue lidar consigo mesmo; 2. o sujeito permanece no grupo, mas entrega para a experiência artística apenas a parte que consegue controlar de si mesmo; resultam disso atores – por vezes – tecnicamente perfeitos, cujo coração, entretanto, bate em algum lugar fora do palco; ele não realiza a experiência moderna do Teatro: entrega total do ator para que possa surgir uma personagem integral em sua parcialidade, verossímil; se a vida é uma experiência incompleta, no palco seria diferente? 3. o sujeito se entrega totalmente, e passa a pertencer ao grupo que mais sofre, pois se mostra, se despe de si mesmo, e expõe o que poderia ser motivo de vergonha, mas não o é, pois ele está sendo fiel a si mesmo; quando você é fiel a si mesmo naquilo que faz, você não perde nem ganha nada, você aprende com o que experimentou. Nos três casos, as pessoas tomam caminhos imprevistos na vida, mas a experiência do Teatro sempre estará lá como uma primeira tentativa que se faz de abertura para si e para os outros, um primeiro ensaio de humanidade.


Creio que ontem vi uma experiência do “grupo 3” numa certa atriz. Fui ao teatro e vi alguém aprendendo a viver no palco. Assisti a uma experiência de entrega, um ato de paixão. Se procurarmos pelas raízes da palavra “paixão”, encontraremos, entre outras coisas, “sofrer”. Quem se apaixona sofre; sofre uma experiência, uma transformação; no teatro, esse sofrimento é exposto para um público, e quando há um público, há “compaixão”. “Sofrimento compartilhado” talvez seja, para mim, a melhor definição para o Teatro. Toda definição é resumo, e o resumo suprime muito da beleza de seu objeto. Mesmo assim, “a vida é sofrimento”, como afirmava Sidharta Gautama, o Buda: a vida é uma experiência de sofrimento constante. E esse sofrimento se torna muito pesado quando o experimentamos na solidão. O ator nunca está só quando se entrega; quando compartilha, quando oferece, recebe a si mesmo de volta, de braços abertos, por meio do público.


Ontem vi uma atriz apaixonada. Alguém que manda a si mesma para um lugar qualquer para deixar sair uma personagem. O espetáculo era simples, sem grandes sofisticações ou pretensões. Cumpriu seu papel muito bem. E cada um, no palco e na platéia, “sofreu” com ele a seu modo.


Falava-se acima sobre fidelidade a si mesmo. Para falar de uma experiência muito pessoal, ser fiel a si mesmo no palco pode ser um bom ensaio para se fazer o mesmo na vida. Eis aí um belo desafio, uma verdadeira arte, pela qual vale a pena se “apaixonar”...

terça-feira, 12 de junho de 2007

Ouvir

O dia havia sido intenso. Eu voltava das aulas num final de tarde muito bonito: uma luz mortiça vinda de um sol que já se escondia ao longe. Céu límpido e aquela eletricidade de fim de tarde no ar, emoldurando a densidade das coisas. Naquele momento, mesmo contemplando o que o restante da luz me permitia contemplar, eu também estava cansado, com a impressão de sofrer há algumas horas com uma gravidade jupteriana. Estava tudo lento e meio pesado...

No meio do dia, enquanto almoçava num lugar bem barulhento, eu pedi intensamente por um pouco de silêncio, coisa rara num dia inteiro pleno de aulas: pela manhã, crianças de todas as idades produziam todo tipo de barulho possível na montagem alegre e gostosa de uma festa junina; no almoço – restaurante lotado – me vi cercado por grupos de colegas de trabalho (bancários, publicitários, dentistas, etc.), com trajes todos muito parecidos, conversando acaloradamente, extravasando a ansiedade e muitas outras coisas que orbitam o trabalho que ainda continuariam até o final do dia; e a tarde não prometia variar muito no cardápio: aulas de novo, agora para o pessoal do Ensino Médio. Em resumo, um dia cheio, e muito legal. Mas me dei o direito de realmente desejar silêncio, tranqüilidade. Não consegui, mas me dei conta de que não poderia me preocupar, já que exigir silêncio dos outros é, no mínimo, egoísmo daqueles bem pequenos.

Bem, terminadas as aulas, voltar pra casa. Sentado no fundo do ônibus, notei que em certo momento, as portas traseiras se abriram, e entraram quatro alunos de uma escola próxima. Entravam e pareciam animados pelo assunto da conversa mantida até a chegada do ônibus. Ao subirem, percebi que todos – dois meninos e duas meninas aparentando 11-13 anos – eram surdo-mudos. Ao subirem, ficando perto da porta pela qual entraram, continuaram entretidos na conversa, gesticulando um palavreado intenso, que os olhos curiosos dos demais passageiros não conseguiam ouvir. Sorrisos abertos, olhares francos e diretos, caras feias quando necessário: um fim de tarde feliz entre amigos.

Mais uma coisa me chamou a atenção: como as pessoas, em geral, se tocam pouco! Olhando para aqueles quatro tagarelas animados e impacientes, notei que se tocavam, seguravam, cutucavam e afagavam todo o tempo, em meio ao balé manual. E me deu a impressão de que menos por necessidade de linguagem, e mais por prazer na companhia, o contato era tão freqüente e intenso entre eles.

As pessoas não se tocam, abraçam-se com rigidez, expiram mais do que inspiram, e supõem segundas intenções no mais ínfimo afago. Não se trata de negar a dimensão afetiva humana, fundamental; trata-se da vontade de tirar de cima dela – nem que seja por poucos instantes – o peso cultural dos gestos, palavras e ações. Enquanto observava a conversa dos garotos, me dei conta de que a surdez é uma importante marca contemporânea: não ouvimos nossos amigos, nossos pais, a vida que se agita no entorno, nosso próprio coração batendo. Escutamos, mas não ouvimos...

Lembrei da minha ânsia pelo silêncio, e descobri com aqueles quatro amigos que eu não ansiava pelo silêncio, mas por outra coisa: eu queria ouvir e cantar a Canção do Universo, ritmada pelo coração, aquela da qual nunca nos desconectamos, por mais que a ignoremos. Me senti carente de usar melhor os dons que me foram dados, me senti cansado de ser menos do que poderia, exausto por ouvir e falar sem que haja verdadeiro diálogo. Percebi que tem sido cada vez mais difícil encontrar alguém que aprecia coisas pequenas vivendo-as como se fossem grandiosas; que consiga passar o tempo em silêncio e contemplação quando dá vontade, para falar pelos cotovelos no momento seguinte. Quando a gente percebe que a vida pode ser leve justamente porque a vivemos intensamente, colocamo-nos em guarda contra o resto do mundo. Nas artes marciais, quem defende está com a vantagem. Se pensarmos que a escuta é passiva...

Buda e – pouco menos de quinhentos anos depois – Jesus disseram: “quem tem ouvidos, que ouça”. A frase sempre foi uma de minhas prediletas, fundamental para qualquer professor, aliás. Hoje, pela manhã, eu trabalhava com os alunos na montagem da festa junina da escola. Estava carregando umas coisas pesadas. De repente, sinto um puxão na minha calça, e uma aluna bem pequenininha do primeiro ano (seis anos) me perguntou, com os olhos vibrando:

_ Sabe qual a brincadeira que eu mais quero brincar amanhã?

_ Nem imagino! Me conte!

_ [Com aquela dificuldade de criança pequena para pronunciar o “dri”] A quadrilha.

_ Por quê?

_ Por quê a gente vai passar no túnel, e o túnel é feito pelas mãos de todas as pessoas da escola, e é beeeem grandão...

Ela saiu correndo logo depois de me “contar” o que iria fazer.

As crianças ouvem seu coração. Há outra coisa pra ouvir?