Fui ao teatro. Depois de muito tempo. Musical. Quem me conhece sabe que lido com os musicais de uma maneira, no mínimo, curiosa. Tive ontem uma espécie de nostalgia de palco. E não era uma nostalgia do espetáculo, mas uma nostalgia dos ensaios. Me explico: teatro pequeno, com recursos técnicos de pequena escala, mas bem aplicados. E aquele sabor de “queremos mostrar pra vocês o que andamos preparando”. Há muito eu não sentia essa mesma energia...
Me fez lembrar da época dos ensaios do grupo de teatro no Colégio Técnico de Jundiaí. Éramos um bando de estudantes do Ensino Médio aprendendo o que era o Teatro. Não estávamos ali por amor à arte, pois não tínhamos repertório, à época, para tal envolvimento. Estávamos lá, se pudermos agrupar as múltiplas razões em dois grupos, por pura diversão e pela possibilidade de libertação relacionada à arte de representar.
A “diversão” era a parte mais simples, mais “pública”: no sentido mais alegre e vívido do termo, um monte de amigos e colegas se reunia nas tardes de sexta-feira para rir, pensar, sentir e brincar juntos. Era gostoso ter companheiros; na época, muitos de nós descobrimos no teatro o que era trabalho em equipe, o que significava se preocupar com o outro pela importância que ele tem para o conjunto. E isso era também divertido: a gente dava muita risada, a gente saía de lá – por vezes – de alma lavada, de coração quente e alegre, recarregado por uma energia luminosa e bonita. Compartilhada generosamente por todos.
“Libertação” foi só um nome que dei para o que, no fundo, continua a ser “diversão”, mas no sentido original do divertire latino, do “desviar-se” (já mencionado em um texto anterior); um desviar-se de si, para um reencontro mais adiante. Para nós todos naquele momento – cada um a sua maneira, claro – o teatro era a porta de entrada para nós mesmos, era o lugar onde descobríamos silenciosamente que possuíamos mais recursos do que acreditávamos possuir, que éramos mais complexos do que podíamos ver, que éramos maiores quando nos descobríamos como seres humanos. A partir daí, havia três caminhos a seguir: 1. o sujeito, com medo de si mesmo, sai do grupo, pois não consegue se encarar ainda; pode ser que o faça depois (tornando-se, inclusive, muito bom nisso), pode ser que não o faça nunca, mas o teatro o tortura, pois o força a se olhar no espelho, e ele simplesmente não consegue agüentar o que vê, não consegue lidar consigo mesmo; 2. o sujeito permanece no grupo, mas entrega para a experiência artística apenas a parte que consegue controlar de si mesmo; resultam disso atores – por vezes – tecnicamente perfeitos, cujo coração, entretanto, bate em algum lugar fora do palco; ele não realiza a experiência moderna do Teatro: entrega total do ator para que possa surgir uma personagem integral em sua parcialidade, verossímil; se a vida é uma experiência incompleta, no palco seria diferente? 3. o sujeito se entrega totalmente, e passa a pertencer ao grupo que mais sofre, pois se mostra, se despe de si mesmo, e expõe o que poderia ser motivo de vergonha, mas não o é, pois ele está sendo fiel a si mesmo; quando você é fiel a si mesmo naquilo que faz, você não perde nem ganha nada, você aprende com o que experimentou. Nos três casos, as pessoas tomam caminhos imprevistos na vida, mas a experiência do Teatro sempre estará lá como uma primeira tentativa que se faz de abertura para si e para os outros, um primeiro ensaio de humanidade.
Creio que ontem vi uma experiência do “grupo 3” numa certa atriz. Fui ao teatro e vi alguém aprendendo a viver no palco. Assisti a uma experiência de entrega, um ato de paixão. Se procurarmos pelas raízes da palavra “paixão”, encontraremos, entre outras coisas, “sofrer”. Quem se apaixona sofre; sofre uma experiência, uma transformação; no teatro, esse sofrimento é exposto para um público, e quando há um público, há “compaixão”. “Sofrimento compartilhado” talvez seja, para mim, a melhor definição para o Teatro. Toda definição é resumo, e o resumo suprime muito da beleza de seu objeto. Mesmo assim, “a vida é sofrimento”, como afirmava Sidharta Gautama, o Buda: a vida é uma experiência de sofrimento constante. E esse sofrimento se torna muito pesado quando o experimentamos na solidão. O ator nunca está só quando se entrega; quando compartilha, quando oferece, recebe a si mesmo de volta, de braços abertos, por meio do público.
Ontem vi uma atriz apaixonada. Alguém que manda a si mesma para um lugar qualquer para deixar sair uma personagem. O espetáculo era simples, sem grandes sofisticações ou pretensões. Cumpriu seu papel muito bem. E cada um, no palco e na platéia, “sofreu” com ele a seu modo.
Falava-se acima sobre fidelidade a si mesmo. Para falar de uma experiência muito pessoal, ser fiel a si mesmo no palco pode ser um bom ensaio para se fazer o mesmo na vida. Eis aí um belo desafio, uma verdadeira arte, pela qual vale a pena se “apaixonar”...