quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Sim

O interessante Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo de hoje:

“(...)Yoko Ono era uma artista relevante quando ela encontrou John Lennon. A lenda conta que Lennon se apaixonou por ela por causa de uma obra, ‘Ceiling Painting’ (pintura no teto), de 1966. Trata-se de uma escada branca no topo da qual você encontra uma lupa, com que é possível ler uma [pequenina] inscrição: ‘Yes’. (...) No CCBB [Centro Cultural Banco do Brasil, onde a exposição da artista fica até 03 de fevereiro de 2008], é proibido tocar na escada de ‘Ceiling Painting’. O que fazer? No espírito da exposição, subir a escada encarando os seguranças? Ou negar o sentido da exposição e acatar a proibição?

Nos anos 60, eu teria subido e armado um barraco, mas os tempos mudaram. Na época, se comprasse uma briga, a metade dos visitantes me apoiaria, e talvez a coisa terminasse na demolição do CCBB por uma turma de revoltados, até a chegada da polícia. Hoje, eu seria um vândalo isolado.

Por causa dessa mudança dos tempos, na exposição, as peças interativas (quadros para pintar ou para encher de pregos, cacos que podemos rejuntar com cola, etc.) são tristes pela modéstia bem-comportada de quem aceita o convite a se expressar. Por exemplo, somos convidados a escrever um desejo num papel que penduraremos na ‘Árvore do Desejo’, a qual, no fim da exposição, ficará carregada de sonhos e aspirações”.

A escada branca de “Ceiling Painting” me lembra que na Amsterdã dos mesmos anos sessenta podia-se encontrar nas ruas uma bicicleta inteiramente pintada de branco. Afora a simbologia que o Ocidente construiu em torno da cor branca, essa bicicleta era deixada pelas ruas para ser usada por quem dela precisasse, não interessando os motivos. A pessoa pegaria a bicicleta, andaria com ela até seu destino, deixando-a por , até que o próximo a utilizá-la lhe desse um novo destino, e assim por diante. Nada mais característico do espírito da classe média daquela época na Europa...

Voltemos à obra de Yoko Ono por meio dessas bicicletas brancas de Amsterdã que são as palavras. “Ceiling Painting” parece ser uma prova inconteste de que as palavras têm vida própria. O “Sim” é óbvio, redutor, objetivo, confirmador, ao contrário de seu irmão-gêmeo, o “Não”. O “Sim” é tão peremptório em intenção, e ao mesmo tempo tão abrangente em alcance, que fica difícil dar a ele outro sentido que não o que lhe cabe. O “Sim” dos anos sessenta é muito diferente, no entanto, do “Sim” da primeira década do século XXI. O que aconteceria a John Lennon se desejasse – em muitos sentidosdizersimem 2007? Certas perguntas doem ao serem formuladas, a ponto de não desejarmos respondê-las...

O lugar comum é dizer que nossa época é eminentemente medíocre. Talvez valha a pena retomar o curiosamente empoeirado Karl Marx: “os homens fazem a história, mas não a fazem como querem”. Ao longo da história da humanidade, todas as épocas são o retrato do que as pessoas que nela vivem – coletiva e individualmente – produzem. Emprega-se aqui produzir”, não pensar”. Pensamento, imaginação, sentimentos e sensações são maravilhosos e imprescindíveis; mas o mundo também é feito de matéria, o que significa que materializar intenções em ações faz com que elas existam de fato. Nos anos sessenta, muitas pessoas pensaram e procuraram construir um mundo em que se pudesse dizersim”. Creio que houve relativo sucesso na empreitada: pode-se dizersim” à vontade no mundo de hoje, na proporção inversa em que esse mesmosim” se materializa, se solidifica no mundo concreto.

Mesmo que o assunto fosse outro, estive conversando ontem com uma pessoa muito querida, que me relembrou a origem de uma frase que ela mesma citou há algum tempo; o filósofo francês Pierre Lévy afirmou, certa feita (gostei de escrever isso, “certa feita”; da uma boa impressão a respeito daquele que escreve, não?): “O século XXI será o século de quem souber escolher”. Saber escolher é mesmo fundamental, mas a frase de Lévy oculta o mais importante em sua aparente simplicidade: a escolha somente é escolha ao se concretizar como tal. De que vale escolher e não fazer, pegar, mexer, experimentar?

Me lembro de ouvir alguém dizer que a bicicleta branca era um símbolo bonito, mas que em nada resultava. Se nos contentamos apenas com o símbolo, realmente há pouco a fazer. A “Árvore do Desejo” também é um símbolo bonito, mas podemos pendurar nela a culpa pelossimque não pronunciamos?

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