No sábado, encontrei um grande amigo – o Márcio. Fomos ao cinema, numa decisão repentina, e assistimos “Homem-Aranha III”. Apesar de querer escrever imediatamente após chegar em casa, esperei alguns dias para terminar o texto. Creio que os leitores entenderão minhas razões...
Sou um tanto antiquado. E não é de agora: sempre me senti deslocado, alguém fora do Tempo. Sintomático que eu tenha estudado justamente História, não?! Bem, auto-análises à parte, o fato é que fui ao cinema com o simples intuito de viver algumas “horas leves”, pois já sei há tempos que não posso esperar grandes reflexões sobre o sentido da Existência em filmes como o que fui assistir, apesar de o cinema ser também o lugar da surpresa. Mesmo sendo fã de quadrinhos, e fascinado por mitologia e pela trajetória dos heróis em geral, procurei por simples diversão (diverto, do latim; em um sentido particular, “separar-se, desviar-se”) naquela noite de sábado. Sem dúvida, o filme é diversão garantida, no sentido mais globalizado da palavra (para o bem e para o mal). São horas muito legais para quem está disposto. Gostei muito!
Bem, como toda forma de arte, o cinema também permite que falemos a partir dele sobre o que acontece além dele. O que realmente me levou a escrever não esteve na tela, mas fora dela: três alegres adolescentes sentadas à minha esquerda temperaram o espetáculo de maneira imprevisível – elas “narraram” todo o filme, do começo ao fim, sem um segundo sequer de descanso! Questões importantes como “ai, ela tá mais feia neste filme”, ou “e agora, o que eles vão fazer?”, ou ainda “ai gente, comi todo aquele bolo de cenoura da minha mãe hoje; eu tô muuuito gorda!”, fizeram bela figura, bradadas em considerável volume para quem quisesse ouvir. Demonstraram elas grande talento na construção de um ágil contato com os diálogos originais da trama... Quando eu disse que elas “narraram” o filme, quis dizer “comentaram”, no sentido futebolístico-televisivo que conhecemos tão bem: riram, gritaram, desconfiaram, brigaram entre si (por motivos que em nada pareciam lembrar o que se passava no filme), se emocionaram, e encantaram a todos com sua presença de espírito! Isso tudo entremeado por batalhas sutis cuja munição era a pipoca e o combustível vários litros de refrigerante, em parte distribuídos fartamente em poças pelo chão ou em gotículas no entorno...
Infelizmente, isso tudo me preocupou, e muito. Os pós-modernos dirão que estou fazendo muito barulho por nada, que eu não precisava me incomodar assim, que estou virando um tiozão, e etc. Por mais que os leitores duvidem, honestamente o ocorrido não me pegou pessoalmente, não me senti particularmente ofendido em meu aparente direito garantido pelo ingresso. O que me chocou foi a total ausência de compromisso. As meninas eram novas, mas não tão novas a ponto de não perceberem o que estavam fazendo. No entanto, elas realmente pareciam não se dar conta de onde estavam, e do que faziam. Conversavam animadamente entre si, como se estivessem em qualquer outro lugar, e isso, para mim, foi assustador...
Não é de hoje que andamos todos com dificuldades para determinar as fronteiras e diálogos possíveis entre os espaços público e privado. Nas últimas décadas temos sido mesmo adestrados a aprofundar cada vez mais essa indistinção, por questões que vão dos imperativos econômicos, passando pela nebulosidade dos modelos de conduta e chegando à dificuldade em olharmos para o outro como um semelhante, um “outro eu maior do que eu”. Por mais incrível que possa parecer – ali, em meio à sala escura e ao burburinho incessante produzido pelas meninas –, fui vítima de reflexões que também fugiram do filme: me lembrei de uma descrição que li certa vez a respeito da primeira sessão de cinema de que se tem notícia. Em 1895, em Lyon, na França, os irmãos Lumière apresentaram em primeira mão para uma “platéia seleta” (membros do Congresso das Sociedades Fotográficas Francesas) o filme “A Chegada do Trem na Estação”. A câmera, colocada ao lado dos trilhos, filmava a chegada do trem, e a transmissão era interrompida pela passagem do mesmo, que “atropelava o olhar”. “Acompanhemos a descrição que o escritor Máximo Gorki fez da sua primeira impressão quando viu o filme: ‘De repente há um estalo, tudo se apaga e um trem numa ferrovia aparece na tela. Ele dispara como uma flecha na sua direção – cuidado! A sensação que se tem é como se ele se arremessasse na escuridão até onde você está sentado e fosse reduzi-lo a um saco de pele estropiado... e destruir esse salão e esse prédio... tornando tudo em fragmentos de pó’”. A platéia seleta, e as posteriores, em uma cena recorrente, abandonavam a sessão em pânico e aos gritos...
Não há dúvida de que o cinema é fascinante, uma experiência forte, em todos os aspectos. Depois de Freud (que “coincidentemente” escrevia ao mesmo tempo em que o cinema estreava), descobrimos que algo é fascinante também à medida em que nos entregamos ao fascínio, emulamos no objeto o desejo de nos reapropriarmos – mesmo que fugazmente – de nós mesmos. Desde que as salas de cinema começaram a se espalhar pelo mundo, todos ouvimos falar de narrativas que colocavam o cinema como o espaço da “liberdade nas trevas”, o território público que a escuridão tornava privado, pessoal. Do tímido resvalar de mãos na penumbra até os mais escabrosos e inenarráveis “actus nefandus”, o cinema sempre foi lugar de encontros: encontramos a nós mesmos na tela e os amigos e os desconhecidos na platéia, encontramos uma experiência já vivida por alguns, ainda não vivida por muitos.
Esse encontro múltiplo na escuridão é, simultaneamente, agregador e subversivo. Permite às escuras o que talvez não aconteça às claras, ilumina um pouco em cada um de nós a escuridão do viver em sociedade. As pessoas, mobilizadas pela mesma narrativa, riem, choram, pensam e se descobrem coletivamente, dissolvidas no escuro e na atenção ao que acontece na tela. Eu disse que sou meio antiquado por ainda ver o cinema como um espaço de devoção: como escapar, naquela sala escura, do compromisso comigo mesmo? As meninas de que falei há pouco também foram ao cinema para se divertir, se “desviar” da vida, como tão bem demonstraram; no entanto, o fizeram sem cumprir a parte mais importante do pacto coletivo materializado numa sala de exibição: o cinema é o lugar do sonho, do compromisso consigo mesmo e com os outros (desconhecidos ou não), o lugar em que se desenrola uma narrativa à qual nos entregamos, pois é isso o que procuramos. Não falo apenas da narrativa colocada na tela, mas de todas aquelas narrativas pessoais e coletivas já mencionadas: o filme, por vezes, pode ser pano de fundo para o desenrolar de um silencioso drama pessoal que não podemos resolver no cinema, mas o procuramos com uma esperança no imprevisível. As meninas me mostraram que há pessoas que – por vezes – estão tristemente desligadas de si mesmas a tal ponto que não conseguem se envolver, se ligar, se comprometer com as coisas. Pergunta que me ocorreu: quem não se envolve ao menos consigo mesmo realmente pode dizer que vive em sociedade?
O cinema é um dos poucos espaços em que a magia é permitida na nossa triste Modernidade; e como inconsciente e profundamente sabemos todos nós – sem exceção – para que qualquer magia se manifeste, é necessário o ritual, pois a magia não cabe na realidade, ela a transcende. O que é um ritual senão a entrega total de cada um para algo maior? Num mundo em que os rituais se desintegram velozmente, cabe perguntar: sem o rito há o humano?
Agora, vamos ao esperado final mesquinho – ou vocês imaginaram que sou eu mesmo o último bastião da moralidade e da Razão, uma espécie de Palas Athena de calças? Ledo engano... Ao final da sessão, quando os créditos “subiam” como aranhas pela parede diante de nós, não pude resistir: toquei no braço da menina mais próxima e me inclinei para a frente, para chamar a atenção delas todas. Atenção devidamente captada, disparei rapidamente, num tom genuinamente (!) amável e suficientemente audível: “Com licença? Creio que todos aqui concordam comigo: a amizade de vocês é mesmo linda! Parabéns! E bom final de semana”.
Caros leitores, por favor me julguem: não sei se fiquei mais feliz por destilar um pouco de ironia (uma amizade tão linda que não pode ser contida nem mesmo dentro do cinema), pela expressão bovina simultânea das meninas (“quem é esse cara / o que ele quis dizer?”) ou pelos risinhos que ouvi às minhas costas, vindos do pessoal que estava em volta (e participava da minha consternação, embora com um pouco mais de sangue no olhar). Só sei que o momento – pra mim – foi mágico! Façam suas apostas...
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O texto citado sobre o escritor Máximo Gorki está presente no belo capítulo de SEVCENKO, Nicolau. – “A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio”. In: História da Vida Privada no Brasil – Volume III (Volume organizado por Nicolau Sevcenko). – São Paulo: Companhia das Letras, 2002. pp. 517.