terça-feira, 12 de junho de 2007

Ouvir

O dia havia sido intenso. Eu voltava das aulas num final de tarde muito bonito: uma luz mortiça vinda de um sol que já se escondia ao longe. Céu límpido e aquela eletricidade de fim de tarde no ar, emoldurando a densidade das coisas. Naquele momento, mesmo contemplando o que o restante da luz me permitia contemplar, eu também estava cansado, com a impressão de sofrer há algumas horas com uma gravidade jupteriana. Estava tudo lento e meio pesado...

No meio do dia, enquanto almoçava num lugar bem barulhento, eu pedi intensamente por um pouco de silêncio, coisa rara num dia inteiro pleno de aulas: pela manhã, crianças de todas as idades produziam todo tipo de barulho possível na montagem alegre e gostosa de uma festa junina; no almoço – restaurante lotado – me vi cercado por grupos de colegas de trabalho (bancários, publicitários, dentistas, etc.), com trajes todos muito parecidos, conversando acaloradamente, extravasando a ansiedade e muitas outras coisas que orbitam o trabalho que ainda continuariam até o final do dia; e a tarde não prometia variar muito no cardápio: aulas de novo, agora para o pessoal do Ensino Médio. Em resumo, um dia cheio, e muito legal. Mas me dei o direito de realmente desejar silêncio, tranqüilidade. Não consegui, mas me dei conta de que não poderia me preocupar, já que exigir silêncio dos outros é, no mínimo, egoísmo daqueles bem pequenos.

Bem, terminadas as aulas, voltar pra casa. Sentado no fundo do ônibus, notei que em certo momento, as portas traseiras se abriram, e entraram quatro alunos de uma escola próxima. Entravam e pareciam animados pelo assunto da conversa mantida até a chegada do ônibus. Ao subirem, percebi que todos – dois meninos e duas meninas aparentando 11-13 anos – eram surdo-mudos. Ao subirem, ficando perto da porta pela qual entraram, continuaram entretidos na conversa, gesticulando um palavreado intenso, que os olhos curiosos dos demais passageiros não conseguiam ouvir. Sorrisos abertos, olhares francos e diretos, caras feias quando necessário: um fim de tarde feliz entre amigos.

Mais uma coisa me chamou a atenção: como as pessoas, em geral, se tocam pouco! Olhando para aqueles quatro tagarelas animados e impacientes, notei que se tocavam, seguravam, cutucavam e afagavam todo o tempo, em meio ao balé manual. E me deu a impressão de que menos por necessidade de linguagem, e mais por prazer na companhia, o contato era tão freqüente e intenso entre eles.

As pessoas não se tocam, abraçam-se com rigidez, expiram mais do que inspiram, e supõem segundas intenções no mais ínfimo afago. Não se trata de negar a dimensão afetiva humana, fundamental; trata-se da vontade de tirar de cima dela – nem que seja por poucos instantes – o peso cultural dos gestos, palavras e ações. Enquanto observava a conversa dos garotos, me dei conta de que a surdez é uma importante marca contemporânea: não ouvimos nossos amigos, nossos pais, a vida que se agita no entorno, nosso próprio coração batendo. Escutamos, mas não ouvimos...

Lembrei da minha ânsia pelo silêncio, e descobri com aqueles quatro amigos que eu não ansiava pelo silêncio, mas por outra coisa: eu queria ouvir e cantar a Canção do Universo, ritmada pelo coração, aquela da qual nunca nos desconectamos, por mais que a ignoremos. Me senti carente de usar melhor os dons que me foram dados, me senti cansado de ser menos do que poderia, exausto por ouvir e falar sem que haja verdadeiro diálogo. Percebi que tem sido cada vez mais difícil encontrar alguém que aprecia coisas pequenas vivendo-as como se fossem grandiosas; que consiga passar o tempo em silêncio e contemplação quando dá vontade, para falar pelos cotovelos no momento seguinte. Quando a gente percebe que a vida pode ser leve justamente porque a vivemos intensamente, colocamo-nos em guarda contra o resto do mundo. Nas artes marciais, quem defende está com a vantagem. Se pensarmos que a escuta é passiva...

Buda e – pouco menos de quinhentos anos depois – Jesus disseram: “quem tem ouvidos, que ouça”. A frase sempre foi uma de minhas prediletas, fundamental para qualquer professor, aliás. Hoje, pela manhã, eu trabalhava com os alunos na montagem da festa junina da escola. Estava carregando umas coisas pesadas. De repente, sinto um puxão na minha calça, e uma aluna bem pequenininha do primeiro ano (seis anos) me perguntou, com os olhos vibrando:

_ Sabe qual a brincadeira que eu mais quero brincar amanhã?

_ Nem imagino! Me conte!

_ [Com aquela dificuldade de criança pequena para pronunciar o “dri”] A quadrilha.

_ Por quê?

_ Por quê a gente vai passar no túnel, e o túnel é feito pelas mãos de todas as pessoas da escola, e é beeeem grandão...

Ela saiu correndo logo depois de me “contar” o que iria fazer.

As crianças ouvem seu coração. Há outra coisa pra ouvir?



Um comentário:

Nina Anderson disse...

João,
esse foi o mais profundo texto que já lí sobre os sentidos.