terça-feira, 12 de junho de 2007

Ouvir

O dia havia sido intenso. Eu voltava das aulas num final de tarde muito bonito: uma luz mortiça vinda de um sol que já se escondia ao longe. Céu límpido e aquela eletricidade de fim de tarde no ar, emoldurando a densidade das coisas. Naquele momento, mesmo contemplando o que o restante da luz me permitia contemplar, eu também estava cansado, com a impressão de sofrer há algumas horas com uma gravidade jupteriana. Estava tudo lento e meio pesado...

No meio do dia, enquanto almoçava num lugar bem barulhento, eu pedi intensamente por um pouco de silêncio, coisa rara num dia inteiro pleno de aulas: pela manhã, crianças de todas as idades produziam todo tipo de barulho possível na montagem alegre e gostosa de uma festa junina; no almoço – restaurante lotado – me vi cercado por grupos de colegas de trabalho (bancários, publicitários, dentistas, etc.), com trajes todos muito parecidos, conversando acaloradamente, extravasando a ansiedade e muitas outras coisas que orbitam o trabalho que ainda continuariam até o final do dia; e a tarde não prometia variar muito no cardápio: aulas de novo, agora para o pessoal do Ensino Médio. Em resumo, um dia cheio, e muito legal. Mas me dei o direito de realmente desejar silêncio, tranqüilidade. Não consegui, mas me dei conta de que não poderia me preocupar, já que exigir silêncio dos outros é, no mínimo, egoísmo daqueles bem pequenos.

Bem, terminadas as aulas, voltar pra casa. Sentado no fundo do ônibus, notei que em certo momento, as portas traseiras se abriram, e entraram quatro alunos de uma escola próxima. Entravam e pareciam animados pelo assunto da conversa mantida até a chegada do ônibus. Ao subirem, percebi que todos – dois meninos e duas meninas aparentando 11-13 anos – eram surdo-mudos. Ao subirem, ficando perto da porta pela qual entraram, continuaram entretidos na conversa, gesticulando um palavreado intenso, que os olhos curiosos dos demais passageiros não conseguiam ouvir. Sorrisos abertos, olhares francos e diretos, caras feias quando necessário: um fim de tarde feliz entre amigos.

Mais uma coisa me chamou a atenção: como as pessoas, em geral, se tocam pouco! Olhando para aqueles quatro tagarelas animados e impacientes, notei que se tocavam, seguravam, cutucavam e afagavam todo o tempo, em meio ao balé manual. E me deu a impressão de que menos por necessidade de linguagem, e mais por prazer na companhia, o contato era tão freqüente e intenso entre eles.

As pessoas não se tocam, abraçam-se com rigidez, expiram mais do que inspiram, e supõem segundas intenções no mais ínfimo afago. Não se trata de negar a dimensão afetiva humana, fundamental; trata-se da vontade de tirar de cima dela – nem que seja por poucos instantes – o peso cultural dos gestos, palavras e ações. Enquanto observava a conversa dos garotos, me dei conta de que a surdez é uma importante marca contemporânea: não ouvimos nossos amigos, nossos pais, a vida que se agita no entorno, nosso próprio coração batendo. Escutamos, mas não ouvimos...

Lembrei da minha ânsia pelo silêncio, e descobri com aqueles quatro amigos que eu não ansiava pelo silêncio, mas por outra coisa: eu queria ouvir e cantar a Canção do Universo, ritmada pelo coração, aquela da qual nunca nos desconectamos, por mais que a ignoremos. Me senti carente de usar melhor os dons que me foram dados, me senti cansado de ser menos do que poderia, exausto por ouvir e falar sem que haja verdadeiro diálogo. Percebi que tem sido cada vez mais difícil encontrar alguém que aprecia coisas pequenas vivendo-as como se fossem grandiosas; que consiga passar o tempo em silêncio e contemplação quando dá vontade, para falar pelos cotovelos no momento seguinte. Quando a gente percebe que a vida pode ser leve justamente porque a vivemos intensamente, colocamo-nos em guarda contra o resto do mundo. Nas artes marciais, quem defende está com a vantagem. Se pensarmos que a escuta é passiva...

Buda e – pouco menos de quinhentos anos depois – Jesus disseram: “quem tem ouvidos, que ouça”. A frase sempre foi uma de minhas prediletas, fundamental para qualquer professor, aliás. Hoje, pela manhã, eu trabalhava com os alunos na montagem da festa junina da escola. Estava carregando umas coisas pesadas. De repente, sinto um puxão na minha calça, e uma aluna bem pequenininha do primeiro ano (seis anos) me perguntou, com os olhos vibrando:

_ Sabe qual a brincadeira que eu mais quero brincar amanhã?

_ Nem imagino! Me conte!

_ [Com aquela dificuldade de criança pequena para pronunciar o “dri”] A quadrilha.

_ Por quê?

_ Por quê a gente vai passar no túnel, e o túnel é feito pelas mãos de todas as pessoas da escola, e é beeeem grandão...

Ela saiu correndo logo depois de me “contar” o que iria fazer.

As crianças ouvem seu coração. Há outra coisa pra ouvir?



quarta-feira, 16 de maio de 2007

Monstros

Já é tarde. Ao menos pra mim, num meio de semana. Nos últimos tempos, quando o assunto é a redação de uma certa dissertação de mestrado, repito pra mim mesmo: “o inimigo sou eu”. Ao mesmo tempo, me pergunto se vou conseguir terminar o que comecei, e se o que estou fazendo é realmente o que deve ser feito. Muitos já passaram por isso...


Honestamente? Os monstros não me assustam. O que me assusta é a prostração à mesa: o fardo nunca é maior do que a gente pode carregar, pois ele é interno, assim como a força com que o carregamos. Por vezes, não nos prostramos pelo excesso de esforço, mas porque parece ser a posição que a gente merece, e da qual - perigosamente, em momentos de profunda fraqueza – nos perguntamos se devemos mesmo sair. Isso é assustador...


Francisco de Goya e Lucientes (1746-1828). – “O Sonho da Razão produz monstros” (c. 1799), água-forte, 207 X 145 cm, Real Cacografia, Madrid (Série de gravuras – “Caprichos”).

segunda-feira, 14 de maio de 2007

Compromisso

No sábado, encontrei um grande amigo – o Márcio. Fomos ao cinema, numa decisão repentina, e assistimos “Homem-Aranha III”. Apesar de querer escrever imediatamente após chegar em casa, esperei alguns dias para terminar o texto. Creio que os leitores entenderão minhas razões...


Sou um tanto antiquado. E não é de agora: sempre me senti deslocado, alguém fora do Tempo. Sintomático que eu tenha estudado justamente História, não?! Bem, auto-análises à parte, o fato é que fui ao cinema com o simples intuito de viver algumas “horas leves”, pois já sei há tempos que não posso esperar grandes reflexões sobre o sentido da Existência em filmes como o que fui assistir, apesar de o cinema ser também o lugar da surpresa. Mesmo sendo fã de quadrinhos, e fascinado por mitologia e pela trajetória dos heróis em geral, procurei por simples diversão (diverto, do latim; em um sentido particular, “separar-se, desviar-se”) naquela noite de sábado. Sem dúvida, o filme é diversão garantida, no sentido mais globalizado da palavra (para o bem e para o mal). São horas muito legais para quem está disposto. Gostei muito!


Bem, como toda forma de arte, o cinema também permite que falemos a partir dele sobre o que acontece além dele. O que realmente me levou a escrever não esteve na tela, mas fora dela: três alegres adolescentes sentadas à minha esquerda temperaram o espetáculo de maneira imprevisível – elas “narraram” todo o filme, do começo ao fim, sem um segundo sequer de descanso! Questões importantes como “ai, ela tá mais feia neste filme”, ou “e agora, o que eles vão fazer?”, ou ainda “ai gente, comi todo aquele bolo de cenoura da minha mãe hoje; eu tô muuuito gorda!”, fizeram bela figura, bradadas em considerável volume para quem quisesse ouvir. Demonstraram elas grande talento na construção de um ágil contato com os diálogos originais da trama... Quando eu disse que elas “narraram” o filme, quis dizer “comentaram”, no sentido futebolístico-televisivo que conhecemos tão bem: riram, gritaram, desconfiaram, brigaram entre si (por motivos que em nada pareciam lembrar o que se passava no filme), se emocionaram, e encantaram a todos com sua presença de espírito! Isso tudo entremeado por batalhas sutis cuja munição era a pipoca e o combustível vários litros de refrigerante, em parte distribuídos fartamente em poças pelo chão ou em gotículas no entorno...


Infelizmente, isso tudo me preocupou, e muito. Os pós-modernos dirão que estou fazendo muito barulho por nada, que eu não precisava me incomodar assim, que estou virando um tiozão, e etc. Por mais que os leitores duvidem, honestamente o ocorrido não me pegou pessoalmente, não me senti particularmente ofendido em meu aparente direito garantido pelo ingresso. O que me chocou foi a total ausência de compromisso. As meninas eram novas, mas não tão novas a ponto de não perceberem o que estavam fazendo. No entanto, elas realmente pareciam não se dar conta de onde estavam, e do que faziam. Conversavam animadamente entre si, como se estivessem em qualquer outro lugar, e isso, para mim, foi assustador...


Não é de hoje que andamos todos com dificuldades para determinar as fronteiras e diálogos possíveis entre os espaços público e privado. Nas últimas décadas temos sido mesmo adestrados a aprofundar cada vez mais essa indistinção, por questões que vão dos imperativos econômicos, passando pela nebulosidade dos modelos de conduta e chegando à dificuldade em olharmos para o outro como um semelhante, um “outro eu maior do que eu”. Por mais incrível que possa parecer – ali, em meio à sala escura e ao burburinho incessante produzido pelas meninas –, fui vítima de reflexões que também fugiram do filme: me lembrei de uma descrição que li certa vez a respeito da primeira sessão de cinema de que se tem notícia. Em 1895, em Lyon, na França, os irmãos Lumière apresentaram em primeira mão para uma “platéia seleta” (membros do Congresso das Sociedades Fotográficas Francesas) o filme “A Chegada do Trem na Estação”. A câmera, colocada ao lado dos trilhos, filmava a chegada do trem, e a transmissão era interrompida pela passagem do mesmo, que “atropelava o olhar”. “Acompanhemos a descrição que o escritor Máximo Gorki fez da sua primeira impressão quando viu o filme: ‘De repente há um estalo, tudo se apaga e um trem numa ferrovia aparece na tela. Ele dispara como uma flecha na sua direção – cuidado! A sensação que se tem é como se ele se arremessasse na escuridão até onde você está sentado e fosse reduzi-lo a um saco de pele estropiado... e destruir esse salão e esse prédio... tornando tudo em fragmentos de pó’”. A platéia seleta, e as posteriores, em uma cena recorrente, abandonavam a sessão em pânico e aos gritos...


Não há dúvida de que o cinema é fascinante, uma experiência forte, em todos os aspectos. Depois de Freud (que “coincidentemente” escrevia ao mesmo tempo em que o cinema estreava), descobrimos que algo é fascinante também à medida em que nos entregamos ao fascínio, emulamos no objeto o desejo de nos reapropriarmos – mesmo que fugazmente – de nós mesmos. Desde que as salas de cinema começaram a se espalhar pelo mundo, todos ouvimos falar de narrativas que colocavam o cinema como o espaço da “liberdade nas trevas”, o território público que a escuridão tornava privado, pessoal. Do tímido resvalar de mãos na penumbra até os mais escabrosos e inenarráveis “actus nefandus”, o cinema sempre foi lugar de encontros: encontramos a nós mesmos na tela e os amigos e os desconhecidos na platéia, encontramos uma experiência já vivida por alguns, ainda não vivida por muitos.


Esse encontro múltiplo na escuridão é, simultaneamente, agregador e subversivo. Permite às escuras o que talvez não aconteça às claras, ilumina um pouco em cada um de nós a escuridão do viver em sociedade. As pessoas, mobilizadas pela mesma narrativa, riem, choram, pensam e se descobrem coletivamente, dissolvidas no escuro e na atenção ao que acontece na tela. Eu disse que sou meio antiquado por ainda ver o cinema como um espaço de devoção: como escapar, naquela sala escura, do compromisso comigo mesmo? As meninas de que falei há pouco também foram ao cinema para se divertir, se “desviar” da vida, como tão bem demonstraram; no entanto, o fizeram sem cumprir a parte mais importante do pacto coletivo materializado numa sala de exibição: o cinema é o lugar do sonho, do compromisso consigo mesmo e com os outros (desconhecidos ou não), o lugar em que se desenrola uma narrativa à qual nos entregamos, pois é isso o que procuramos. Não falo apenas da narrativa colocada na tela, mas de todas aquelas narrativas pessoais e coletivas já mencionadas: o filme, por vezes, pode ser pano de fundo para o desenrolar de um silencioso drama pessoal que não podemos resolver no cinema, mas o procuramos com uma esperança no imprevisível. As meninas me mostraram que há pessoas que – por vezes – estão tristemente desligadas de si mesmas a tal ponto que não conseguem se envolver, se ligar, se comprometer com as coisas. Pergunta que me ocorreu: quem não se envolve ao menos consigo mesmo realmente pode dizer que vive em sociedade?


O cinema é um dos poucos espaços em que a magia é permitida na nossa triste Modernidade; e como inconsciente e profundamente sabemos todos nós – sem exceção – para que qualquer magia se manifeste, é necessário o ritual, pois a magia não cabe na realidade, ela a transcende. O que é um ritual senão a entrega total de cada um para algo maior? Num mundo em que os rituais se desintegram velozmente, cabe perguntar: sem o rito há o humano?


Agora, vamos ao esperado final mesquinho – ou vocês imaginaram que sou eu mesmo o último bastião da moralidade e da Razão, uma espécie de Palas Athena de calças? Ledo engano... Ao final da sessão, quando os créditos “subiam” como aranhas pela parede diante de nós, não pude resistir: toquei no braço da menina mais próxima e me inclinei para a frente, para chamar a atenção delas todas. Atenção devidamente captada, disparei rapidamente, num tom genuinamente (!) amável e suficientemente audível: “Com licença? Creio que todos aqui concordam comigo: a amizade de vocês é mesmo linda! Parabéns! E bom final de semana”.


Caros leitores, por favor me julguem: não sei se fiquei mais feliz por destilar um pouco de ironia (uma amizade tão linda que não pode ser contida nem mesmo dentro do cinema), pela expressão bovina simultânea das meninas (“quem é esse cara / o que ele quis dizer?”) ou pelos risinhos que ouvi às minhas costas, vindos do pessoal que estava em volta (e participava da minha consternação, embora com um pouco mais de sangue no olhar). Só sei que o momento – pra mim – foi mágico! Façam suas apostas...


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O texto citado sobre o escritor Máximo Gorki está presente no belo capítulo de SEVCENKO, Nicolau. – “A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio”. In: História da Vida Privada no Brasil – Volume III (Volume organizado por Nicolau Sevcenko). – São Paulo: Companhia das Letras, 2002. pp. 517.

segunda-feira, 7 de maio de 2007

Beleza

Ontem tive um dia maravilhoso. Acordei bem cedo para um domingo, e o que me despertou foi o sol que se espreguiçava à janela aberta desde a noite anterior. Pensei em como queria que o dia fosse bom e tranqüilo, pois eu estava precisando muito. Nem todos podem perceber na superfície, mas estou passando pela maior crise interna da minha vida inteira. Sei que ela é necessária, e quero vivê-la, mas por vezes me canso muito. Ando descobrindo que escrever uma dissertação é uma questão mais existencial do que propriamente acadêmica. Se meu orientador lesse essas linhas, ele com razão diria que estou tergiversando. E eu gostaria de poder dizer a ele que todas as coisas nas quais me envolvo são experimentadas profundamente, ganhando de imediato uma dimensão experimental, existencial, densa. Agradeço a ele por me servir de fio-terra, uma tarefa nada fácil quando se trata de alguém como eu...


Bem, voltando ao dia de ontem. Consagrei a primeira parte dele a pôr ordem nas coisas, “arrumar a casa”. Depois do meio-dia, tive uma tarde de sonho: há muito tempo eu não ficava à toa, debaixo de uma árvore, fruindo a beleza de um dia lindo. O tempo passou muito devagar, e eu sabia disso mesmo sem contá-lo. Refleti sobre muitas coisas, mas o mais importante era o que eu estava sentindo. Pensei em pôr a culpa na Lua Cheia que, dizem, exacerba a Natureza como um todo; pensei em pôr a culpa nos astros ou nos números, ou mesmo em minha natureza passional. No entanto, ao me concentrar, me lembrei de que todos somos o resultado do acúmulo de nossas experiências, e nem sempre conseguimos reunir as experiências certas para compor o dia-a-dia da melhor maneira. Vi a mim mesmo como uma árvore, cada ramo recebendo luz e sombra de uma maneira única, uma constelação de ramificações-possibilidades alimentando o conjunto, ramos que à medida que se ampliam e se libertam, se distanciam de sua origem. Em uma tarde singela, debaixo de uma árvore, uma pessoa muito querida – sem o saber – me lembrou de que gosto de mim mesmo, e de que não preciso brigar com minha natureza. Simples assim.


Não sei o que isso parece. Sei o que sinto. Me veio agora à cabeça uma frase de que gosto muito. Em certa altura de “Beleza Americana”, a personagem Rick Fitts fala para a garota pela qual está apaixonado (mais ou menos assim): “Há tanta beleza no mundo, que às vezes acho que meu coração vai se encher dela e estourar como um balão”.


Ando experimentando dois aspectos inauditos da Beleza: a simplicidade e a confusão. Estou feliz, e torcendo para que minha vida me permita viver isso tudo, mesmo que não seja agora. Para compensar, gosto de acreditar que o tempo está ao meu lado. O historiador desconfia disso, acha bobagem, sente-se culpado, sente carregar o fardo do Conhecimento, brada aos quatro ventos: “a ignorância é um luxo de que não disponho”! Mas os outros dentro de mim estão tentando convencê-lo, acalmá-lo, dizer a ele que a vida não pára, e que ele deve ser mais tolerante para com a Beleza, pois ela está escondida atrás de cada árvore, de cada uma das muitas batidas nas asas de um inseto, de cada frase a ser corrigida.


Quanta beleza há numa tarde debaixo de uma árvore? Cada um pode dar sua medida. No meu caso, ao mesmo tempo que me abro para o céu, estou indissoluvelmente ligado à terra. E me lembro de que não saí de lá ainda. E que não estou sozinho. Que bom!

domingo, 22 de abril de 2007

Fusão

Há muito tempo eu não sonhava com a saudade. O leitor sabe do que eu estou falando? É o sonho com algo que não podemos ter, e que mesmo assim – paradoxalmente – nos desperta nostalgia, como se por todo o sempre estivesse presente...

Quando se descreve um sonho, existe uma regra: não espere muita coerência, pois o Universo é maior do que a Razão. Espere menos ainda das interpretações e conclusões: a realidade é um chicote e o pensamento um cavalo cego...

Sonhei com minha família. Minha mãe, meu pai e irmãos. Deixei Jundiaí há sete anos. No sonho, eu tinha uma bicicleta verde-clara, uma emulação da Freestyle da Caloi que eu tinha quando criança, mas agora numa versão Mountain Bike, talvez para que o meu eu atual nela coubesse. Eu estava em Jundiaí, vindo de São Paulo, e ia para casa, almoçar com o povo num domingo. Na rua, em frente de casa, encontrei meu pai; ele ensinava um menino que eu não identifiquei (e ao qual não dei muita atenção) a andar de bicicleta. Desci da minha, e nos cumprimentamos: como de hábito, um abraço breve, daqueles em que os envolvidos parecem se encontrar rotineiramente. Entrei pelo portão, e minha mãe me esperava com mil e uma palavras a dizer, todas elas com aquela cara de “você devia aparecer mais”. Interrompi antes de ser terminada a primeira frase, e a abracei longa e intensamente, como se não nos víssemos tanto quanto gostaríamos. No sonho, o abraço durou muito tempo, e minha culpa deixou de ser um problema. Meus irmãos estavam lá, e cumprimentei a todos com divertida versatilidade: a Júlia, com trajes indianos característicos, mereceu um abraço longo e delicado, por meio do qual uma energia intensa, violeta, quase roxa, circulou, para além das palavras. Ainda vamos nos reencontrar – Júlia e eu – e contar um pro outro os motivos de estarmos por aqui. A Ana mereceu outro abraço, agora longo e forte, caloroso, e eu sabia que ela e uma outra pessoa de nome muito parecido – a diferença está em algum lugar entre um “n” e um “d” – estava lá com ela. Sempre vi a Ana como veículo de uma energia muito bonita, e acho que agora começo a entender isso um pouco mais. Eu queria mesmo era ver o Victor, mas ele não estava em casa: eu o encontrei no alto da rua, os dois de bicicleta. Ele me olhava com o mesmo olhar de quando éramos crianças: até hoje eu me pergunto – o que ele pensava quando via o irmão naquela bicicleta verde? Desci da bicicleta, e nos abraçamos também longamente, mas com uma intensidade gigantesca, maior do que o Oceano (estou chorando só de lembrar, e as teclas estão embaçadas). Eu o abraçava, mas ele também trazia consigo alguém mais, ou algo mais...

Ao acordar, eu me perguntava obsessivamente sobre quem era aquela pessoa fundida ao meu irmão. O sonho prosseguiu depois, com eventos bizarros e desventuras em série, além de final grotesco... mas eu ainda continuava a me perguntar sobre o que tinha ocorrido quando abracei meu irmão no alto da rua. A primeira frase deste texto não saiu da minha cabeça desde que acordei e acho que ela está diretamente relacionada com esse último abraço. Depois de muito pensar, acho que cheguei numa boa interpretação. Nos últimos tempos, sinto que estou me despedindo de uma versão de mim mesmo para encontrar outra, que me espera ansiosa aqui dentro. Tenho recebido vários avisos há anos, além de cada vez mais sentir a tempestade chegando. Quando tememos o que podemos nos tornar estamos no caminho certo? Quando seus amigos olham com estranheza estamos falhando? Quem tem medo de ser infinito? Eu tenho...

Ao abraçar meu irmão, eu também abracei a mim mesmo, talvez pela primeira vez. Abracei uma versão atemporal de mim mesmo, abracei quem eu gostaria de ser, quem eu sei que posso e devo me tornar e também um menino que há muito tempo anda de bicicleta verde, mas em outra cidade, em outra época. Ao acordar, eu estava feliz: olhei pras minhas pernas e passei as mãos pelos cabelos – estariam as pernas sujas da terra vermelha cheirosa que tínhamos perto de casa? Estariam meus cabelos compridos a ponto de eu poder penteá-los? Quer saber? Estavam. Sempre estiveram...

***

Hoje é aniversário do meu avô. Eu amo e admiro aquele homem com todas as minhas forças. Ele vai almoçar lá em casa. Vou ligar lá daqui a pouco, quando terminar de escrever. Eu não estarei lá por causa do trabalho acumulado. O trabalho não é demais; eu é que sou desorganizado. Eu me conheço: já me puno o suficiente por causa desses deslizes. Depois perguntam porque as pessoas sonham. Saudades de si ou dos outros. Saudades, ora!

terça-feira, 17 de abril de 2007

Encontro

Encontrei hoje, sem combinar, uma antiga (?) aluna minha, a Julyara. Acho que só ela sabe a alegria que senti ao revê-la pois não pude contê-la nos olhos, e tive de abraçá-la longamente, na entrada do shopping. Algumas das pessoas que (re)encontramos em nossa trajetória pela vida são daquelas em que o reconhecimento é fácil, a simplicidade é a regra e os olhos dizem mais que o suficiente. Essas pessoas são alunos, professores, desconhecidos nos ônibus, floristas, encanadores, músicos; estão em todos os lugares, e acredito que elas existam na proporção da abertura de cada um de nós para o mundo. Desde a infância reencontramos muitas dessas pessoas, e crescemos experimentando o mundo também com elas e por elas.

Me lembro de um evento entre eu e a Julyara, do qual eu não mais me recordava, depois de tantos anos sem vê-la. Viajamos para Ilhabela na formatura da Oitava Série dela. Ao longo de todo o ano, tudo o que havíamos convivido naquele primeiro ano de escola – para além do trabalho como professor e aluna – havia se resumido àquelas conversas fortuitas em corredores ou papos entrecortados durante os almoços. Ao chegarmos à praia, talvez na terceira ou quarta noite, estávamos todos à beira-mar, professores e alunos, conversando em grupinhos próximos, e notei que a Julyara parecia triste, e andava mais afastada de todos. Aqueles que me conhecem sabem que não sou o tipo de sujeito que chega perto dos outros para convencê-los a voltar para o grupo; desde criança me sinto mais à vontade ao me juntar aos que saem...

Não preciso revelar o teor da conversa, mas posso dizer que contamos um pro outro naquela bela noite o que ia no coração de ambos. Frustrações, alegrias, fim de ano, amizades, amores e olhar para o futuro. Recebi naquela noite uma dádiva: me senti privilegiado por poder conviver e contar com aquela menina maravilhosa. O mundo definitivamente era um bom lugar apenas por ela estar por aí.

Há alguns anos venho me desafiando a enxergar meus alunos o mais possível como seres humanos. Aqueles que são professores sabem como isso é difícil por vezes, pois o trabalho dá com uma mão e tira com a outra. No caso da Julyara, ela á como todo mundo: está batalhando pela vida, encontrando os amigos, comendo chocolate. Mas nos olhos dela também transparece a cristalina realidade: ela não desistiu de ser aquela menina de inteligência e sensibilidade densas como a Terra ancestral na qual vivemos...

Fico feliz por saber que o grande encontro da Julyara já aconteceu: há tempos ela se encontrou consigo mesma...